quarta-feira, fevereiro 16, 2011

O que é filosofia

Texto para as aulas de filosofia.


O que é filosofia

PRADO Jr., Caio. O que é filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1981 (Primeiros Passos, 37).

* Texto originalmente publicado no Almanaque, nº 4, Ed. Brasiliense, 1977.

Não precisamos buscar na infinidade de conceitos de "Filosofia" — talvez um para cada autor de certa expressão, e que à vagueza das formulações acrescentam às vezes até posições contraditórias —não precisamos procurar aí a incerteza e imprecisão que reinam e, sobretudo em nossos dias, no que concerne o objeto da especulação filosófica. Muito mais ilustrativa é a consulta aos, textos filosóficos ou qualquer exposição ou análise do desenvolvimento histórico do assunto. De tudo se trata, pode-se dizer, ou se tem tratado na "Filosofia", e até os mesmos assuntos, ou aparentemente os mesmos, são considerados em perspectivas de tal modo apartadas uma das outras que não se combinam e entrosam entre si, tornando-se impossível contrastá-las. Para alguns, essa situação é não apenas normal, mas plenamente justificável.

A Filosofia seria isso mesmo: uma especulação infinita e desregrada em torno de qualquer assunto ou questão, ao sabor de cada autor, de suas preferências e mesmo de seus humores. Há mesmo quem afirme não caber à Filosofia "resolver", e sim unicamente sugerir questões e propor problemas, fazer perguntas cujas respostas não têm maior interesse, e com o fim unicamente de estimular a reflexão, aguçar a curiosidade. E já se afirmou até que a Filosofia não passava de uma "ginástica" do pensamento, entendendo por isso o simples exercício e adestramento de uma função — no caso, o pensamento em vez dos músculos — sem outra finalidade que essa.

Apesar, contudo, de boa parte da especulação filosófica, particularmente em nossos dias, parecer confirmar tal ponto de vista, ele certamente não é verdadeiro. Há sem dúvida um terreno comum onde a Filosofia, ou aquilo que se tem entendido como tal, se confunde com a literatura (no bom sentido, entenda-se bem) e não objetiva realmente conclusão alguma, destinando-se tão somente, como toda literatura, a par do entretenimento que proporciona, levar aos leitores ou ouvintes, a partir destes centros condensadores da consciência coletiva que são os profissionais do pensamento, levar-lhes impressões e estados de espírito, emoções e estímulos, dúvidas e indagações. Mas esse terreno que a Filosofia, ou pelo menos aquilo que se tem entendido por "Filosofia", compartilha com a literatura, não é toda Filosofia, nem mesmo, de certo modo, a sua mais importante e principal parte. E nem ao menos, a meu ver, com todo interesse que possa representar, constitui propriamente "Filosofia", e deveria antes se confundir, na classificação, e às vezes até mesmo na designação, com a mesma literatura com que já apresenta tantas afinidades.

Mas conserve embora a Filosofia literária sua qualificação e status, é necessário que a par dela e com ela se desenvolva também uma Filosofia de outro teor que dê resposta, e na medida do possível, precisa, às questões que efetivamente nela se propõem. A Filosofia pode a rigor ser tratada literariamente, como pode sê-lo a Ciência e o conhecimento em geral. Mas que isso seja forma, e não fundo. Esse fundo é outra coisa que, apesar de tudo, se percebe em todo verdadeiro filósofo, por mais que se disfarce num pensamento confuso, disperso, sem objetivo desde logo aparente e seguro. Que se percebe sobretudo na Filosofia em conjunto como maneira específica de tratar dos assuntos de que se ocupa, por mais variados e díspares que sejam. Com toda sua heterogeneidade, confusão e hermetismo de tantos de seus textos vazados em linguagem acessível unicamente a iniciados—ou antes, por eles julgados acessíveis, mais do que acessíveis de fato — com tudo isso, a Filosofia encontra ressonância tal que, se não fosse outro o motivo, já por si bastaria para comprovar que nela se abrigam questões que dizem muito de perto com interesses e aspirações humanas que devem, por isso, ser atendidos, e não frustrados pela ausência ou desconhecimento de objetivo e rumo seguros da parte daqueles que se ocupam do assunto.

Mas onde encontrar esse "objeto" último e profundo da especulação filosófica para o qual converge e onde se concentra a variegada problemática de que a Filosofia vem através dos séculos e em todos os lugares se ocupando; e de que trata ? E muito importante determiná-lo, porque isso pouparia esforços que tão freqüentemente se perdem em indagações inúteis ou mel propostas; e que, concentrados na direção de um alvo legítimo e claramente definido, reuniriam um máximo de probabilidades de atingirem esse alvo, ou pelo menos de o aproximarem. Existirá contudo esse objeto central e legítimo de toda a especulação filosófica, um denominador comum que embora disfarçado e mal explícito, orienta mais ou menos inconscientemente aquela especulação? Acredito que sim, e a sua determinação constitui tarefa necessária e preliminar da indagação filosófica; e, certamente, mesmo que não chegue logo a uma precisão rigorosa (se é que ela é possível), será por certo de resultados altamente fecundos.

O ponto de partida dessa determinação deve ser, para nada perder em objetividade, a consideração e exame do próprio conteúdo e desenvolvimento daquilo que se tem por pesquisa filosófica e do Conhecimento em geral. Mais comumente a Filosofia é tida como Uma complementação da Ciência e da elaboração cognitiva em geral; como seu coroamento e síntese. Esse conceito da Filosofia se encontra aliás mais ou menos expressamente formulado em boa parte das definições e explicações que dela se dão, e partidas dos mais afastados e mesmo antagônicos quadrantes. Até mesmo o séc. XVIII, e talvez o seguinte, Filosofia ainda se confundia com Ciência; e das filosofias particulares (como por exemplo a "filosofia química", que não é senão a nossa Química, simplesmente) passava-se imperceptivelmente para assuntos gerais que se enquadrariam melhor naquilo que hoje entenderíamos mais especificamente como "Filosofia".

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